No universo da ciência, a credibilidade das informações é um pilar essencial. Um artigo científico sobre Pokémon trouxe à tona um problema que a comunidade científica enfrenta: as revistas predatórias. Esses periódicos, que se disfarçam de publicações legítimas, ameaçam a integridade da ciência ao publicar artigos sem a devida revisão por pares, muitas vezes em troca de taxas de publicação exorbitantes. Vamos entender melhor essa questão através de uma história curiosa.
Em março de 2020, um artigo intitulado “Cyllage City COVID-19 Outbreak Linked to Zubat Consumption” (Surto de COVID-19 na Cidade de Cyllage Vinculado ao Consumo de Zubats, tradução nossa) foi publicado na revista American Journal of Biomedical Science & Research. Para quem não está familiarizado com Pokémon, Cyllage é uma cidade fictícia da região de Kalos, presente nos jogos Pokémon X e Y (2013), e Zubat é um Pokémon morcego. O título, aparentemente técnico, poderia passar despercebido, mas para os entusiastas dos jogos, a fraude era evidente. O autor do artigo, Matan Shelomi, um entomologista, professor na Universidade Nacional de Taiwan e fã da franquia Pokémon, escreveu o texto como uma paródia, com a intenção de testar a credibilidade da revista.
Os nomes dos autores listados no artigo também eram claramente fictícios para quem conhece Pokémon: Utsugi Elm (uma referência ao Professor Elm da série de jogos), Nazu Joy (uma alusão à enfermeira Joy dos Centros Pokémon), Gregory House (o famoso personagem da série de TV “House”) e Mattan Schlomi (pseudônimo baseado em seu próprio nome). O artigo sugeria absurdamente que um surto de COVID-19, com 420 infectados e sete mortos, estava relacionado ao contato com Zubats na Connecting Cave, outro local fictício do jogo. Além disso, mencionava uma iguaria culinária fictícia feita com carne de Zubats chamada “Zubat à la Ortolã”.
O mais alarmante é que, apesar do conteúdo claramente absurdo e fictício, a revista publicou o artigo sem qualquer revisão por pares. Matan Shelomi registrou sua experiência em um blog renomado chamado The Scientist, revelando que a revista aceitou o manuscrito apenas quatro dias após o envio e ainda exigiu uma taxa de publicação de $1.179. Esse episódio escancara a prática das revistas predatórias, que publicam artigos sem a devida revisão e cobram altas taxas dos autores, comprometendo a qualidade e a credibilidade da ciência.
O autor, em uma determinada parte do texto do artigo ainda escreve: “um periódico que publica este artigo não pratica revisão por pares e deve, portanto, ser predatório” (tradução nossa); na lista de referência incluiu autores hilários como Harry Potter, Bruce Wayne e a dupla de vilões Jesse e James, escancarando ainda mais a falta de credibilidade da revista mencionada.
Este caso de Pokémon pode parecer inofensivo, pois trabalha com elementos fictícios e não induz a ações perigosas. No entanto, o impacto das revistas predatórias vai muito além. Elas podem publicar artigos com informações incorretas ou enganosas, que podem ser utilizadas por pessoas mal-intencionadas para espalhar desinformação. Isso é especialmente perigoso em áreas como a saúde, onde informações erradas podem levar a comportamentos prejudiciais. Portanto, é fundamental questionar a fonte das informações e estar atento à credibilidade dos periódicos científicos. A integridade da ciência e a segurança das pessoas dependem disso.
Esta não foi a primeira tentativa de Shelomi de revelar e denunciar as atividades de revistas predatórias e certamente não será a última. Este incidente curioso serve como um lembrete para que cientistas iniciantes e experientes permaneçam atentos. É essencial desconfiar de propostas que pareçam muito boas para ser verdade, verificar a credibilidade das revistas, confirmar se estão indexadas em bases de dados respeitáveis e examinar a reputação dos revisores.
Publicação perigosa
Periódicos predatórios são publicações que adotam práticas antiéticas e utilizam artifícios para se apresentarem como revistas científicas legítimas. Seu principal objetivo é obter lucros por meio das taxas de publicação, conhecidas como Article Processing Charges (APCs). Para alcançar essa lucratividade, esses periódicos priorizam a quantidade e a velocidade das publicações, negligenciando etapas cruciais do processo editorial, especialmente a revisão por pares. Esse processo, essencial para a verificação da qualidade dos manuscritos, é muitas vezes suprimido, permitindo que qualquer trabalho submetido seja publicado sem a devida avaliação de conteúdo, método ou originalidade. Além disso, periódicos predatórios atraem autores com promessas de publicação rápida, utilizando métricas e informações falsas, e enviando convites de publicação por e-mail, explorando informações dos autores disponíveis na internet.
Para saber mais
O Perfil de Matan Shelomi no Research Gate pode ser encontrado aqui
O artigo publicado pela revista, que ainda está no ar, pode ser acessado aqui
O relato de Matan Shelomi pode ser acessado aqui
Este artigo de Jeffrey Beall publicado na Revista Nature intitulado “Editores predatórios estão corrompendo o acesso aberto”
Este artigo de Nícolas Carlos Hoch e Carlos Frederico Martins Menck publicado no Jornal da USP intitulado “Revistas predatórias e ciência de baixo impacto: cortando o mal pela raiz”